Python Sul 2018 - Minha experiência pessoal

Em Abril aconteceu a Python Sul 2018, evento regional da linguagem de programação Python que reúne profissionais e curiosos da região sul do Brasil. No ano de 2017 eu tinha sido keynote e o Adriano jogou a responsa de 2018 para mim. Ok, vamos lá. Ao longo de 7 meses de organização e 3 dias de evento eu aprendi tanto, mas TANTO, que eu decidi escrever sobre isso (e porque o Mário Sérgio me “ordenou” que um texto sobre o que aconteceu deveria acontecer).

Sobre a organização em si (o que foi feito e como), vou escrever um outro texto. Hoje eu quero falar sobre a questão humana do negócio, ok?

Foto oficial da Python Sul 2018:

Acessibilidade

Em 2017 eu tinha conhecido a Amanda através da Cristiana, que trabalha na Associação de Surdos de Florianópolis. A Amanda é uma mulher surda que faz Ciências da Computação em Chapecó, uma cidade do Oeste de Santa Catarina (mais ou menos 550km de Florianópolis). Se já acho computação difícil, eu não consigo imaginar como deve ser difícil fazer uma faculdade inteira usando intérpretes. Sério, a história dessa mulher é incrível. E é importante citar algumas coisas: nem todos os intérpretes são legais e dedicados e mais ainda: eles não são dessa área, eles não conhecem os termos. Aliás, a maioria dos termos técnicos não tem tradução para LIBRAS. Os problemas vão se somando… e eu não quero nem pensar no tipo de preconceito conjunto que deve haver com a combinação mulher + surda. Enfim… vocês entenderam o cenário.

Quando fiquei sabendo que uma mulher guerreira dessa existia, não tive dúvidas: ela precisava vir ao próximo Django Girls que iria acontecer algumas semanas depois dessa minha descoberta. Conversei com a Talita e a Paola e fizemos uma vaquinha para comprar a passagem dela. Durante o Django Girls, a Talita e as demais organizadora conseguiram encontrar a Thuanny, que com muito amor foi apoiar a Amanda ao longo de todo o Django Girls.

Quando chegou na Python Sul eu já sabia que eu pagaria a passagem da Amanda para ela vir ao evento de novo, porque ela precisava ver um evento Python. No entanto, no meio da organização, o Elysson (um dos organizadores) comentou comigo que trabalhava com um rapaz surdo e que ele iria ao evento. Meus alertas internos começaram a piscar. Nesse momento percebi que poderíamos ter 2 desenvolvedores surdos no evento e que era nossa responsabilidade como organização achar um jeito de tornar o evento viável.

Decidimos conversar com a Thuanny e pedimos um orçamento para a tradução do evento todo. O que a Thuanny e a Cris me explicaram é que fazer a tradução para LIBRAS é algo extremamente cansativo e, por isso, o orçamento sempre deve incluir ao menos dois intérpretes. Uma vez que firmamos a parceria entre a EALIS e a Python Sul, começamos a fazer um esforço de conversar com os palestrantes sobre o que deveria ser feito por eles, para um evento mais inclusivo.

Deixo aqui a lista para que outros encontros usem. É uma lista considerável:

  • Devem haver ao menos 2 intérpretes no evento. Fazer a tradução é muito cansativo e elas devem se revezar ao longo do tempo;
  • Pedimos aos palestrantes que enviassem conteúdos de suas palestras com antecedência para que as intérpretes estivessem contextualizadas do que seria dito ao longo do evento;
  • Pedimos aos palestrantes que colocassem imagens e elementos visuais fortes, para que o surdo conseguisse se conectar melhor;
  • Também pedimos para colocar frases contextualizando o que estava sendo dito;
  • Pedimos para evitarem termos em inglês e, quando não fosse possível, que os termos estivessem escritos;
  • Pedimos para que as pessoas falassem devagar e pausadamente;
  • Pedimos para que as pessoas apontassem com um laser o que estava escrito, especialmente quando se tratava de termos em inglês, porque não existem símbolos para eles, o que torna o trabalho muito difícil;
  • Não devemos falar coisas do tipo deficiência auditiva ou surdos-mudos. Devemos chamá-los de surdos ou surdas e saber que eles tem muito orgulho disso.

Uma coisa bem legal que a equipe da Ealis faz é divulgar eventos para a comunidade surda. Esse foi o vídeo de divulgação que eles fizeram pra Python Sul:

Nota: Super recomendo o serviço da EALIS, as intérpretes eram demais! Simpáticas e atenciosas. Os surdos também deram feedbacks ótimos sobre a tradução das palestras.

O impacto da inclusão

Eu particularmente percebi o impacto do que estávamos fazendo quando a Amanda chegou no evento. O palestrante estava de um lado do palco e a intérprete do outro. Quando a Amanda sentou, vi ela olhando para a intérprete enquanto todos os outros olhavam para o palestrante. Aquilo me bateu mais do que eu poderia imaginar e segurei as lágrimas.

Ao longo de todo o evento, a Cristiana serviu como auxílio para que nossa querida comunidade surda fosse incluída nas conversas e nos coffee breaks. Foi muito legal ver as pessoas indo conversar, se interessando e realmente abraçando a inclusão tanto do Sávio, quanto da Amanda. E o mais legal é que isso aconteceu ao longo de todo o evento e nos happy hours. As vezes, eu tentava ir conversar com a Amanda, mas não tinha como porque ela estava ocupada cheia de gente ao redor.

Quando tudo acabou, a Amanda veio com lágrimas nos olhos me agradecer e me batizou na comunidade surda, me dando um sinal para me identificar. O sinal que ela me deu me identificava pelo sorriso. Chorei que nem bebê.

A Amanda e o Sávio criaram juntos o símbolo para Python em LIBRAS. Mandamos isso nos grupos e imediatamente o querido Masanori já mandou uma foto dele fazendo o símbolo.

Pair programming entre pai e filho

Dentre as coisas que aconteceram no evento, uma das lightning talks me marcou demais: um pai (Maurício) e um filho (Matheus) contando como eles fizeram pair programming e, em 4 horas fizeram um jogo. O mais legal? O menino tem apenas 10 anos! Era nítida a alegria dele no palco, contando como foi fazer o jogo e porque ele escolheu aquela ferramenta.

Não era momento das lightning talks, mas eles precisavam ir embora e queríamos muito que aquela palestra acontecesse. Foi um momento lindo demais e, ao sair do palco, o Matheus virou pra mim e disse: “Você viu? Foi a minha primeira vez em um evento e eu já subi no palco para falar”. Lindo demais!!! Se você quer saber mais como eles fizeram, eles estão agora com um canal no youtube para falar sobre programação com crianças :)

Ajuda

Foram inúmeras pessoas que me ajudaram a fazer esse evento lindo! Foi impressionante como a ajuda vinha de todos os lugares e a todos os momentos. Seja o Pastore me expulsando da sala porque eu estava estressada e ele decidiu que ele que ia lidar com os problemas dos microfones, seja o pessoal que nem viu as palestras porque ficou na recepção.

Quando aquele monte de pessoas chegou para comer em um restaurantezinho pequeno ao lado da empresa, vi na hora que a equipe do food truck
não ia dar conta e tudo ia ficar atrasado. Nesse momento, eu fui pra trás do balcão e comecei a receber os pedidos de hambúrguer enquanto o Cris recebia as pessoas que tinham pego buffet. O meu atual líder na empresa e uma das pessoas mais incríveis que eu conheci também pulou pra trás do balcão e começou a servir os chopps. Foi assim, que mesmo na hora do almoço nós trabalhamos para fazer o evento dar certo. Foi hilário receber um pedido de chopp, gritar para o Maurício descer mais um enquanto o Cris, dono do food truck do meu lado me ajudava a revezar as maquininhas de cartão de crédito e débito. E foi lindo ver as pessoas sendo atendidas por toda a equipe, recebendo seus almoços, chopps e pedidos com rapidez. Essa é a foto do Maurício servindo chopp felizão da vida:

Fotos

Contratamos o Paulinho para fazer as fotos do evento. Ele é o mesmo fotógrafo que arrasou nas fotos da Python Brasil em 2016! Claro que as fotos ficaram o máximo e você pode vê-las aqui.

Fotógrafo normalmente não gosta de aparecer na foto mas dessa vez consegui uma foto com ele e o Cris do food truck (no fundo), nosso mestre responsável pelo delicioso almoço e happy hour!

A comunidade se reflete nos pequenos atos

O happy hour do primeiro dia foi no food truck ao lado da empresa. De acordo com o Cris, foi o maior happy hour já feito por ele, com 140 litros de chopp sendo consumidos (+ as cervejas). Apesar de ser o maior, no dia seguinte o Cris veio falar comigo que nunca teve um pessoal tão limpo. Ele falou que se impressionou como ele teve pouquíssimo trabalho de limpeza, que a maioria das latas e copos já estava no lixo, mesmo considerando o tanto de gente que estava lá.

Pagamento de inscrição nos tutoriais

Normalmente, os tutoriais tem tradição de serem gratuitos. Dessa vez, pedimos como forma de “pagamento” 1kg de alimento não perecível. Ainda não sabíamos exatamente para quem seria doado esse alimento, mas decidimos fazer isso. Foram muitos quilos de alimentos recebidos! Algumas pessoas se juntaram e doaram caixas inteiras de alimento!

O resultado foi uma turma muito feliz reunindo o alimento:

Que não parece tanto mas encheu um carrinho enorme!

No fim das contas, o alimento foi doado para a Associação dos Surdos de Florianópolis, que também trabalha com surdos carentes. Os alimentos foram usados na associação e serão usados para fazer uma feijoada beneficente em prol da associação no próximo dia 26 de maio (de 2018).

Olha a Amanda agradecendo pelos alimentos:

Tutorial de inclusão da comunidade surda

A Amanda também deu um depoimento lindo e falou sobre a comunidade surda em um dos tutoriais da Python Sul. Você pode conferir essa história emocionante no vídeo abaixo e na continuação do vídeo.

O que é a comunidade para você

Durante a Python Sul tive uma ideia: fazer um vídeo perguntando para as pessoas o que a comunidade significava para elas. Dei essa missão ao Jojo que fez um vídeo 10 vezes melhor do que eu um dia podería ter imaginado. Confere o que a comunidade falou aqui:

Conclusão

Foi lindo demais fazer esse evento… foi exaustivo e eu fiquei acabada, mas nunca me senti tão bem e tão conectada com o mundo. Eu quero agradecer de coração a todas as pessoas lindas que fizeram parte dessa organização. Foi uma das coisas mais emocionantes e gratificantes que eu já fiz na vida <3

Recentemente, me falaram que fazer eventos não adiantava nada se você não é uma profissional foda, uma pessoa sem experiência. Pois bem, acho que profissionais fodas são aqueles que estão dispostos a ouvir qualquer pessoa. Que ajudam os outros a superarem barreiras e obstáculos. Que tem a elegância de aprender mesmo com quem sabe menos e a humildade de ensinar quem não sabe. Fazer eventos como esse é a maior experiência que se pode ter. Tem que haver amor, gestão, organização, paciência e dedicação. São vocês que me fizeram perceber isso. Obrigada <3

Pessoas > tecnologia. Sempre!

PS: Se eu lembrar de mais coisas vou adicionando aqui ;)

Organização fazendo o símbolo de Python em LIBRAS


Abraço!
Letícia

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